abril 17, 2005

Pequena reflexão adicional sobre o “apelativo”

Antes do 25 de Abril, pode dizer-se que existiam dois matutinos (O Século e o Diário de Notícias), quatro vespertinos (Diário Popular, Diário de Lisboa, República e A Capital) e um semanário (Expresso), A televisão começava a emitir às 19h e terminava, no máximo, pela meia-noite. As estações de rádio autorizadas eram a Emissora Nacional, o Rádio Clube Português, a Rádio Renascença, a Rádio Miramar e os Emissores Associados de Lisboa. À excepção da RTP e da Emissora Nacional, todos eles eram órgãos de comunicação privados.

Não existiam polémicas nem discussões políticas, estávamos com a União Nacional. As pequenas agitações sociais eram ignoradas ou discretissimamente noticiadas. O mesmo acontecia quanto a qualquer forma de violência ou de investigação policial ou criminal, para não perturbar a tranquilidade necessária à estabilidade. Protestos? Só em forma de lirismo poético, quanto muito acompanhado à guitarra. Rivalidades públicas? Só as do Benfica-Sporting, ou as da Simone de Oliveira-Madalena Iglésias. Erotismo? Só o do Parque Mayer. Ordinarices claras? Nem no Parque Mayer! Porém:


os jornais encontravam-se de boa - ou sofrível, quando “de oposição” - saúde económica.; à RTP não faltavam srs. telespectadores; a rádio também não se queixava, longe disso, do número de srs. ouvintes. A popularidade do Zip-Zip foi mesmo de tal ordem, que os que trabalhavam no teatro aproveitaram a diminuição de público que se começou a regista às segundas-feiras, para conseguirem negociar uma paragem semanal nesse dia.

Que tipo de “produtos” eram consumidos por quem os lia, via e ouvia? Em que consistia esse “nada” informativo e espectacular, esse zero do que hoje se procura estabelecer como “apelativo”de uma suposta “eterna natureza humana” que, todavia, os sustentava e viabilizava economicamente?

Como jogam, assim, actualmente a procura e a oferta ao nível do “apelativo”? E sobretudo: o que se joga nesse “apelativo”?

Metaforizando: em que medida o “apelativo” não se reduz ao nível da (de)formativa ração de aviário, que os frangos que nunca andaram no campo tanto apreciam e desejam? E quais são as razões justificativas para a existência de aviários?

Já agora, um momento de reflexão para galináceos e tratadores: o que se procura (e quem e com que intenção) estabelecer como “apelativo” ao nível da comida de frango? E que reflexos podem ter esses produtos no plano da saúde pública?

abril 03, 2005

Ainda algumas considerações sobre o “caso Marcelo Rebelo de Sousa”



Pontos nos is: o antes e o depois

Antes de 25 de Abril de 1974 havia censura em Portugal, censura essa feita por funcionários mais ou menos escrupulosos, mais ou menos argutos (normalmente, menos). Era por esta via que a informação chegava aos portugueses - segundo Marcelo Caetano, a informação que lhes (a eles, portugueses) interessava. Situação, portanto, clara: manda quem pode, obedece quem deve. A bem da Nação, obviamente demitida.

Após o 25 de Abril e a vassourada na repelente instituição censória, estabeleceram-se as condições necessárias para a existência de liberdade de informação. Terá começado então em simultâneo, porém, o processo que nos conduziu ao fundo (?!) de um poço, cujas paredes são as de uma censura exercida por sombras tão omnipresentes, quanto difusas. Pelo menos, segundo a perspectiva que a seguir se procura apresentar e esclarecer, com principal incidência e exemplificação na prática da informação televisiva. Ora de modo sério, ora de modo mais ou menos jocoso, mas sempre com clareza suficiente para que não fiquem muitas dúvidas quanto ao que se pretende dizer.


A censura e o PREC

Ainda abazurdida pelo 25 de Abril, tentando perceber como gerir os novos horizontes, a maioria das redacções dos meios de comunicação social foram sofrendo tentativas de anexação, ou elas próprias se anexando voluntariamente aos mais variados tipos de instituições que se iam formando ou surgindo à luz do dia. Neste sentido, procuraram arrumar-se - ou foram arrumadas - ao serviço de partidos políticos, de movimentos mais ou menos cívicos, mais ou menos militares, mais ou menos religiosos, etc.. Sendo o Partido Comunista, nessa altura, a única organização bem estruturada, não decorreu muito tempo até conseguir controlar as redacções de uma parte substancial da comunicação social. Registaram-se, inclusivamente, confrontos de carácter político-ideológico dentro de instituições desse tipo. No caso do jornal República, por exemplo, os trabalhadores da impressão, ligados à extrema-esquerda, rebelaram-se contra a redacção, ligada ao Partido Socialista, pretendendo que esta adoptasse posições idênticas às daqueles.

A censura não foi, assim, erradicada: as “necessidades da Revolução” fizeram-na, ao contrário, espalhar-se, tornar-se variada e algo difusa. Paradoxalmente (?), refaz-se, como a Fénix, pelo seu lado mais pérfido e tenaz: institui-se, voluntariamente incógnita, na mente de (quase) todos, disfarçada de executora e grande dirigente dos ”desejos legítimos do país real”. E, no ponto em que a Revolução se encontrava, a muito poucos interessava a consciência de que, sob diversos aspectos, ela marchava por maus caminhos.

Pouco mais de um ano decorrido após o 25 de Abril, decretadas as nacionalizações, a maioria dos meios da comunicação acabaram sob a alçada do Estado. O facto deste se encontrar nessa altura, em larga medida, sob forte influência dos comunistas, resultou na transformação da generalidade desses meios em extensões do Comité Central do partido.


E chega o 25 de Novembro

Com o 25 de Novembro deram-se alguns confrontos militares, no sentido de retirar ao PC e à extrema-esquerda o controlo de diversas unidades militares que, entretanto, ambas as forças haviam também conseguido enquadrar nas respectivas estruturas. Assim, por via daquilo a que a esquerda, à excepção do MRPP, considerou - e, 30 anos depois, continua a considerar - como contra-revolução, acabaram por perder influência, não apenas no Estado, nas Forças Armadas, nas empresas, etc., como, claro está, ao nível da comunicação social.

No “caso Rádio Renascença”, os proprietários tomaram mesmo medidas tão radicais como dinamitar o emissor da Buraca (posteriormente reparado e mais tarde demolido, por outras razões), para retomarem o domínio da estação. Silenciado o emissor, já de nada serviria aos “esquerdalhos”que, a partir de dado momento, a haviam utilizado.


... E o pós-25 de Novembro

Como seria previsível, inúmeras discussões se registaram a partir desta data sobre quem controlava isto ou aquilo, sem que (olha lá...! ouve lá...!) se voltasse a referir o problema da censura, a não ser por ocasião de um outro arrufo, pouco menos que inócuo ou inconsequente. Afirmava-se na altura, simplesmente, que determinado órgão de comunicação era pró-isto ou pró-aquilo. Desinteressados interesses - e vice-versa - estabeleceram uma vez mais, em cada caso, aquilo que interessava à população, perdão!, ao público. No tocante às rádios estatais e à televisão, “denunciava-se”, em geral, o seu alinhamento pelo governo, independentemente de quem se encontrasse, no poder - o sempiterno caso da RTP!


A era das rádios locais

Somados alguns anos e após a privatização, total ou parcial, de uns quantos jornais estatais, surgiram as rádios privadas locais e, com elas, a melhoria do panorama informativo. Embora continuassem a existir, com melhores ou piores disfarces, determinadas ligações aqui e ali, a consequente disseminação acabava por elevar o nível da comunicação social até ao globalmente bom. Foi o período em que a censura se tornou, em geral, menos visível; se é verdade que cada qual censurava no seu poleirinho, a profusão destes e a multiplicidade dos respectivos tipos resultavam num equilíbrio final. A televisão - a RTP - era levada a seguir, de alguma forma, o comportamento geral, pelo que também não suscitava grande razão de queixa. Embora metesse frequentemente “a pata na poça”, o panorama, globalmente dentro dos limites da decência, tendia a anular-lhe as manobras.

Evidentemente que, sendo estatal, a RTP sofria, por um lado, a tentativa de controlo pelo partido (ou partidos) que formavam o governo em determinado momento; e, por outro, na medida em que depende do estado e suporta o peso de uma enorme quantidade de funcionários desaproveitados e sub-equipados (quer por via hierárquica, quer por iniciativa própria), o que implica regulares e monumentais prejuízos, tendia a seguir as teses do governo, como forma de beneficiar de sistemáticos e chorudos subsídios - situação de que nunca virá a livrar-se tanto por via directa, como por via de impostos disfarçados de taxas.


... A seguir, o das “redes” de rádios locais

Gradualmente, as rádios locais, bem como as regionais entretanto também criadas, foram sendo adquiridas por uns quantos grupos económicos. A informação começou a ser difundida em regime de outsourcing: muitas delas optavam por comprar programas de informação, sobretudo noticiários, a outras - poucas - estações, ou a empresas criadas somente com o fim de a produzirem e revenderem. Pouco a pouco, o funil estreitava-se.

Em consequência deste panorama, facilmente se depreende que o nível de censura tendesse de novo a subir. Um pequeno conjunto de grupos económicos, grandes à escala do país, passaram a controlar, directa ou indirectamente, a generalidade dos meios de comunicação social.

Naturalmente, os interesses desses grupos não eram necessariamente (para não dizer quase sempre pouco...) coincidentes com liberdades de informação ou até mesmo - em determinado grau - políticas. Os governantes, cientes do problema, cuidavam de manter as hostes calmas (não viesse a comunicação a virar-se contra eles em uníssono), instituindo nesse sentido uma entidade meramente decorativa, pomposamente designada por Alta Autoridade para a Comunicação Social. As oposições, na expectativa de derrube do governo e aproveitando o balanço, postaram-se estrategicamente ao lado dos grupos de comunicação social, pondo assim em causa a própria independência futura, face aos interesses dos lobbys económicos. A democracia portuguesa continuava (...?!) sem amadurecer o suficiente para que os partidos políticos fossem capazes de encontrar convergências onde elas de facto existiam. Os seus interesses imediatos sobrepunham-se (...?!) sempre aos interesses do país como um todo.


A “nova onda” jornalística

Assistia-se entretanto, em simultâneo, à “formação” de hordas de jornalistas e ao respectivo estágio em órgãos da dita comunicação, sedentos de mão de obra gratuita. Mão de obra disposta, na sua maioria, a esquecer (que os tempos estão maus para arranjar emprego...) a carta de princípios por que se deveria reger - é mesmo provável que a maioria dos estagiários nunca haja obtido um conhecimento real (reflectido) do seu conteúdo.

Com a privatização de mais órgãos de comunicação e com o anúncio do aparecimento de televisões privadas adensou-se o processo de concentração. Os denominados grupos de media foram aos poucos adquirindo rádios de todas as dimensões, revistas de vários tipos, jornais, etc..
Perante o anúncio da possibilidade de virem a ser criadas televisões privadas, a RTP abandonou definitivamente a postura de televisão nacional e internacional, passando a dedicar-se à abordagem tanto por cá, como no estrangeiro, de assuntos de faca&alguidar – o terreno coberto continuava a ser o mesmo, mas a matéria era agora local, comezinha e cada vez mais mesquinha ou amesquinhante. Crimes, boatos, má língua, tudo passou a ser abordado e transformado em notícia e a RTP tornada em criadora de boatos, exercitando a especulação como método de trabalho. Sugeria assim, ela própria, a futura e voluntária adopção e submissão ao modelo do que passaremos daqui para a frente a denominar como “o apelativo”, a exemplo, aliás, do que havia já sido iniciado por alguns jornais mais ao “gosto popular.

Neste contexto, apenas equipados com umas lambuzadelas de deontologia jornalística, os novos mercenários da caneta têm como norma “ouvir sempre as duas partes”, embora pareçam ser (...?!) incapazes de escolher aquelas que se encontram situadas no mesmo nível de conhecimento ou de responsabilidade sobre determinada matéria. Mais: no seu entender, a condição sine qua non para “acontecer informação” é a presença, em confronto de uma opinião e a sua contrária, mesmo que a contrária não tenha fundamento ou sequer existência. Isto, que, como se verá, constitui o elemento que subverte, transtorna e baralha o acto de informar, contribui, todavia, decisivamente para o “espectáculo” em que a informação se deve transformar. Paradigmático: num dos debates moderados por Júlia Pinheiro, ainda há pouco tempo, na RTP1, , a mesma, perante a tentativa dos presentes de chegarem a um consenso sobre uma resposta ao problema em discussão, exclama sonora e esfuziantemente: “Mas eu não quero consensos! Quero é polémica!” (citação de memória). A quem não se lembrar, ou não tiver assistido, e duvidar de tanta frontalidade, bastar-lhe-á consultar os arquivos da RTP.

Procure-se explicar melhor o que está em jogo, a partir de alguns exemplos, reais ou imaginários. Começando por um, real: o caso da co-incerinadora a ser colocada numa povoação do distrito de Coimbra. O governo, baseando a sua posição em pareceres científicos e técnicos que asseguram ser essa a melhor solução para um problema que o país não pode adiar mais, toma a decisão de o fazer tanto pela sua eficácia, como por não haver riscos para as populações. Há, contudo, ecologistas que, com base noutro tipo de avaliação do problema, são de parecer contrário e, militantemente, alertam as populações para aspectos que, no seu ponto de vista , não foram tomados em conta, dando ainda a entender, com maior ou menor clareza, que o governo cedeu a interesses económicos. A oposição, à qual se junta a facção interna contrária à facção predominante do partido que governa, manifestam-se com vigor “em defesa das populações”. Estas, na verdade, não têm conhecimentos técnico-científicos suficientes para uma consciência real do que está em questão (apenas uma minoria a poderá ter - e não só em Portugal): compreensivamente, reagem à defesa (ouve lá...! olha lá...!) quando postas perante a possibilidade de, uma vez mais, serem - e, no caso, gravemente - lix... prejudicadas. Como é dada agora - esquematicamente - a informação correspondente a um acontecimento deste tipo e de que forma se pretende (?) esclarecer um público globalmente coincidente, em termos de conhecimentos, com essas populações?

Em primeiro lugar, transmite-se o depoimento do ministro, em seguida os comentários e as posições das diferentes oposições; por fim, as de uns quantos “populares”, mais ou menos preocupados e, preferentemente, exaltados, frente à câmara e ao microfone do jornalista.

Uma peça informativa que tencione sê-lo de facto, tem que ter em conta a situação anteriormente descrita e, consequentemente, deveria, desde logo ao nível do tempo concedido a cada uma das partes, atribuir-lhes, ao menos, igual número de minutos. Contudo, a posição do ministro ocupa apenas uma pequena parte da peça, se comparada com a fatia que somam as das diversas oposições mais a da reportagem no local, transmitida em directo ou em diferido. O grande momento da notícia é, aliás, exactamente este último, a que se concede grande espaço noticioso, enquanto prova definitiva de que as novas tecnologias são humildes servas veiculadoras da sede de verdade do povo e dos seus veros anseios e provações. Através deste processo, promove-se um maior destaque aos “não” do que aos “sim”, pela insistência prioritária na divulgação daquele. Assim, qual é a validade lógica e substancial desse “não em promoção”? De outra maneira: qual o valor informativo dos termos em que é noticiada a polémica?

Nenhum. O “não” do lado das populações poderia ser apenas comunicado pelo próprio pivot de estúdio, dando conta da existência de dúvidas e apreensão. Mas isso não é conveniente por três tipos de razões. Em primeiro lugar, porque dar voz às audiências é uma forma de as fixar e aumentar (a mim não me enganam eles!/agora é que eles me vão ouvir das boas!/também sou gente e estão todos a ver-me!/posso mandar um recado lá para casa?). Em segundo lugar, porque isso permite justificar largos minutos de tempo de emissão com um mínimo de custos, ao mesmo tempo que estabelece a tensão psicológica que garante o interesse por novas surtidas informativas sobre o tema. Finalmente, porque consolida a premissa ideológica em que assenta a própria existência do tipo de regime (democrático) que permite a informação como negócio: a de que o povo sabe e, por isso, sabe escolher e decidir sobre o que há para ele de mais importante e sobre como e quem o pode levar à prática.

É claro que, nestes casos, se costuma realizar debates no intuito de esclarecer a opinião pública, dos quais, todavia, nunca se retira nenhuma conclusão. E isto não só porque são predominantemente enformados pelo já referido espírito de polémica, como - sejamos justos - em pelo menos 90% dos casos os convidados estão ali para marcarem o seu território (na gíria, mijarem no pneu do vizinho) e não para uma verdadeira tentativa de elucidação do problema e um consenso quanto à melhor solução para o resolver. Agostinho da Silva, com o desassombro dos seus oitenta e muitos anos, insurgiu-se, no decorrer de um debate deste tipo, contra os restantes participantes, dizendo-se irritado exactamente por este género de atitude (alguém ainda se lembra?). E durante a “Conversa Vadia” que manteve com o jornalista Adelino Gomes referiu o facto não exclusivamente, mas também, português de os políticos confundirem política com guerrilhas de poder, em vez de ser o acto de se ajudarem mutuamente no solucionamento dos problemas. Noutra interpretação, apontou o facto de a racionalidade humana não ter atingido ainda o nível suficiente para nos fazer sair da pré-história.

A perversidade de tudo isto não se limita, contudo, ao que já foi abordado: praticar a “informação” a este nível, implica entrar num jogo ainda mais vasto e perigoso. Com efeito, o governo foi mandatado pelo voto popular, isto é, foi-lhe por ele atribuída a responsabilidade e a correspondente autoridade que são o sustentáculo do funcionamento e da manutenção do regime. A Comunicação Social, porém, age como se nos encontrássemos perante um governo de ditadura, privilegiando o repúdio popular e a voz da oposição. A Comunicação Social fomenta e estimula a instabilidade política e social, da qual, em seguida, colhe os dividendos, agarrando as audiências ao “espectáculo” dos golpes e contra-golpes desferidos entre os contendores da luta pelo poder. Não prejudica desta maneira a credibilidade do regime que a possibilita enquanto empório comercial e industrial? Claro, mas também ganha força ao angariar apoios e privilégios dos políticos que dela necessitam e a pretendem manipular. Desinteressado, o “público” alhear-se-á cada vez mais da prática da cidadania, mas manterá o interesse pela chegada das novas popstars: os líderes partidários, de menor estofo político e humano, mas de imagem intensamente mediática. O que resta dos verdadeiros políticos, ainda com prestígio suficiente para serem convidados para um debate na televisão, assusta-se e não poupa críticas à Comunicação Social (refiram-se as intervenções de Mário Soares, Adriano Moreira e Freitas do Amaral num programa recente de Fátima Ferreira, na RTP1).

Neste contexto, passemos agora a um exemplo imaginário, mas que dá bem conta de como, em simultâneo, cresceu o poder dos órgãos de comunicação e extravasou a percepção do seu significado e importância na vida social e política, ao ponto de ameaçar a democracia. Suponhamos que o presidente do conselho de administração de uma empresa fazia circular entre os empregados uma circular atribuindo a ocorrência de determinada anomalia ao mau funcionamento da tesouraria. Não seria, no mínimo, inusitado (salvo se fosse também accionista, isto é, se se encontrasse num plano igual ao do director) que o chefe desse sector mandasse distribuir pela empresa um comunicado, imprimido com os meios da mesma empresa, desmentindo em tom desafiador o presidente do conselho de administração? Ninguém estranharia que tal procedimento tivesse como consequência o seu despedimento, na medida em que, por um lado, teria desrespeitado o processo normal, hierarquizado, do averiguamento (se de tal houvesse necessidade) da situação, e, por outro, consequentemente, tivesse constituído um factor pertubador da estabilidade da empresa. O que seria de esperar era que, caso se concluísse após investigação que, enquanto responsável do sector, lhe fora feita uma acusação não devidamente fundamentada, solicitasse que isso fosse divulgado pelo conselho de administração, no intuito de evitar não só dúvidas em relação ao desempenho da tesouraria, o que constituiria um factor de instabilidade na empresa, por parte dos empregados, como também à sua competência profissional e de chefia.

E, no entanto, quem não se lembra do funcionário José Eduardo Moniz, qual caudilho de uma qualquer ditadura sul-americana, utilizando com pose arrogante os meios do sector público de que era responsável para desafiar as afirmações do seu maior superior hierárquico? A bem da estabilidade social e política, Soares fez o que devia fazer face a tamanha jagunçada: ignorou-o.

Ao longo do que se disse a propósito destes exemplos terá ficado explícito ou, pelo menos, implícito muito do que em seguida se abordará e concluirá.


O novo interesse do povo: o apelativo

Os meios de comunicação em geral começaram cada vez mais a dar maior importância a assuntos capazes de criar stress nas audiências. É assim natural que, aos poucos, se fossem misturando realidade e ficção.

A actividade especulativa, (que, no campo político, se designa eufemisticamente por criação de um facto), passou a ser uma trave mestra da postura dos meios de comunicação. Esta forma de abordar as questões vem normalmente acompanhada de uma forma de construção de textos ou de diálogos tendente a criar stress – não necessária e claramente a lançar o boato, mas sugerindo-o subrepticiamente como algo mais do que uma mera possibilidade, algo próximo do facto. Isto é assumido como um princípio destinado a tornar a informação mais apelativa, ao envolvê-la num suspense ou dúvida permanente. Para esse efeito é, pois, indispensável credibilizar ou descredibilizar as personagens que mais convenha, ao sabor do momento e da conjuntura.

Tais técnicas, diga-se, não são exactamente inovadoras, usam-se em ficção há centenas ou milhares de anos. O que há de novo nesse processo de sobreposição dos dois planos está na extensão, profundidade e permanência dos seus efeitos pela utilização de meios de comunicação muitíssimo mais poderosos e abrangentes, na legítima (ouve lá...! olha lá...!) intenção de “agarrar” o irrespeitado público. Sub-reptícia, esta técnica foi, aliás, já utilizada em propaganda por dois verdadeiros especialistas na matéria: Mussolini e Hitler. Sem esquecer Lenine, o qual, sempre na vanguarda, ao mesmo tempo que afirmava que só a Verdade é revolucionária, ressalvava, porém, que a verdade é o que (ele sabia que indiscutivelmente) “convém à classe operária”.

A verdade é agora o que “agarra as audiências” (política e economia juntas mais do que nunca). E é exactamente disso que os meios de “comunicação” se encarregam. Chegámos `a actualidade.


Da censura e do lixo

Resolvidos os problemas tecnológicos, começa a corrida no sentido da informação mínima no tempo máximo. Sucedem-se directos sobre coisa nenhuma, directos em que o jornalista debita informação que diz ter recebido no local, mas que, na verdade, lhe chegou via estúdio ou redacção. Quanto mais este processo progride em direcção ao absurdo mais a redacção se torna permeável a zunzums, a “dicas”, e, obviamente, a caneiros de informação – ou melhor, da desinformação conveniente -, nada ligados aos princípios deontológicos do jornalismo.

Nas situações em que, não havendo ainda informação disponível, mas convindo que, dada a sua suposta relevância, passe a haver, a RTP e outros meios de comunicação lançam mão do tratamento especulativo do caso. Esse tratamento é feito ao nível do que eventualmente tenha acontecido ou possa estar a acontecer - sem no entanto se referir a possibilidade de tal poder nunca vir a suceder!, na medida em que isso denunciaria a total falta de sentido da “notícia”. O passo que medeia entre a hipótese remota e a certeza absoluta é pequeno e rápido. Basta que cada meio de comunicação vá citando outro e burilando o que ele escreveu ou disse anteriormente, para que a certeza seja “inequivocamente” atingida.

Está por fim, legal e democraticamente, montada uma nova e monstruosamente eficaz ferramenta de censura que age por afogamento na especulação. A sufocação da espécie humana pelo lixo não é uma metáfora sem sentido.

Esta arma passa a ser sistemática e eficientemente utilizada nas situações em que um dado detentor de um cargo de responsabilidade, por qualquer razão, não quer ou não pode facultar a informação pretendida. A especulação torna-se desenfreada, há solicitação de comentários ou de emissão de hipóteses a terceiros, (em último recurso, as do próprio jornalista), fazendo sempre todo o possível por projectar a especulação como algo real. Não se esquece, ao mesmo tempo, de se denegrir, mais ou menos clara e intencionalmente, aquele que retém a informação, remetendo-o à posição de algoz, ou de sabotador da actividade de juiz e justiceiro do verdadeiro paladino do bom povo, em democracia: o jornalista.



O bolo e os morangos

As já referidas hordas de jornalistas estagiários são um problema para os resistentes (que os há!) à tomada da profissão pelo mundo do marketing e propaganda. Apercebendo-se da enorme quantidade de voluntariosos profissionais dispostos a ocupar o seu lugar, os inquietos resistentes vão inevitavelmente amolecendo, remetendo-se ou sendo remetidos ao silêncio, tentando passar despercebidos para evitarem as pressões e, em última instância, passando à reforma mais ou menos indignada. Muitos sentem-se, simplesmente derrotados. De facto, tudo está contra eles e, em resposta a qualquer levantar de dedo, recebem o epíteto de Velhos do Restelo – quando não simplesmente de “cotas”, resistentes somente por simples incapacidade de compreensão das virtudes das novas “técnicas jornalísticas”.

Os grupos económicos, cientes do desconforto causado por este novo ambiente, tiram dele partido, tratando de criar colunas de opinião distribuídas por umas dúzias de opinantes e, mantendo relativamente isentos de pressão uma meia dúzia de figuras projectadas a jornalistas de referência, vão procurando dar a impressão de que tudo está melhor do que nunca – prepara-se um bolo de fermento enfeitado com moranguinhos. A decoração é completada com opinion makers (termo bué de “à la page”), alguns dos quais são os próprios directores dos meios de comunicação social que o temperam com as respectivas coroas de louros. A forma do bolo é criada pelo grupo media, que o lambuza, por fim, com alguns protegidos.


As televisões privadas

É agora! As televisões privadas estabelecem-se, a concentração aumenta, prepara-se o assalto final.

Passam a ser abordados apenas os assuntos que mais cativam o “povão” telespectador, à medida do que lhe interessa, veiculando os dados mais próximos da visão que ele mais deseja ver confirmada. Esta estratégia é particularmente notória em matéria de política internacional, ora desculpabilizando por omissão, ora atribuindo o papel de vilão ou de imbecil a determinadas figuras. Tudo em nome do sossego das consciências, tratadas com desvelo pelos órgãos de comunicação social, que justifica assim “moralmente” o princípio de fazer subir, por todos os meios, o nível das audiências, eliminando o que possa levá-lo a descer. Alcandora-se mesmo este princípio ao plano de “missão cívica”, o jornalista investe-se de oficiante da educação, da justiça, de sacerdote de uma humanidade em busca de novos e globalizados “amanhãs que cantam”.

É a plena celebração e glorificação de S. Patrono dos profissionais de Marketing (deve haver...!). O jornalista não faz publicidade; é o heróico e glorioso humilde divulgador da doutrina. Falando a sério: o jornalista não pode de forma alguma, fazer publicidade, pode abrir o terreno para que ela seja feita e surta efeito. O que a audiência gosta de ouvir, depende do contexto. Pode gostar de ouvir “o bem”, por exemplo quanto um meio de comunicação social resolve ser “bom samaritano”, apesar de nunca divulgar quantos espezinha para o conseguir; ou pode gostar de ouvir “o mal” quando um qualquer “malandro”, mais ou menos notório ou notado, seja apanhado. E mesmo que não seja apanhado é-o nos jornais, rádios e Televisões. Esborrachada a varejeira, podemos dormir descansados.

Os poderes económicos controlam agora completamente a informação, exceptuando alguns, - poucos - acontecimentos que, por tão óbvios, não possam passar sem serem noticiados “sem rede”. Mas até nestes casos o distorcer da verdade em benefício de meros intuitos comerciais vai acabando por tornar somente aparente o desmascaramento do eventual escândalo. Nos casos bicudos vindos a lume a comunicação social desvia-se facilmente para os fait-divers, evitando intencionalmente o que é de facto determinante e significativo, não só porque, por um lado, tais aspectos são de maior complexidade, exigindo uma verdadeira análise, como, por outro, permitem uma maior diversidade “multicolorida”, são de mais simples digestão e permitem a ocupação de muito espaço “informativo”, diminuindo os custos da produção própria desses espaços. Enchem-se páginas, ecrãs e microfones, ocupam-se horas com inutilidades, bizarrias, obsessões, voyeurismo. A estupidez é elevada à categoria de razão de vir ao mundo, de valor que finalmente faz a síntese entre o ético e o económico – ou porque se pratica ou porque se gosta dela. Kant, Stuart Mill e Marx roem-se de inveja. Cristo, então, nem se fala – consta que está em fase de revisão da doutrina.

É por esta altura que surge a piada onde se diz que a diferença entre um especialista e um jornalista é que um especialista sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e um jornalista sabe cada vez menos sobre cada vez mais. Chega-se ao ponto em que todos abordam, sem pestanejar, todo e qualquer assunto, mesmo daqueles de que não conhecem rigorosamente nada, mas sempre com douta postura, juízo assertórico e tom incisivo.

O aparecimento da SIC marca o início da diminuição da qualidade geral de toda a programação. Tendo em atenção as fracas bases culturais dos portugueses no seu todo, os responsáveis pela estação não hesitam e direccionam-na no sentido de conteúdos adequados ao respectivo nível de gostos. Em nome da conquista de audiências a programação é feita segundo um máximo denominador comum que resulta num mínimo de conteúdo, mesmo que em nome do simples entretenimento. E como a luta é por essas audiências, facilmente se percebe que, a cada programa, se procure o máximo desse mínimo. A programação desce, pois, ao parolo do parolo. E quando a TVI emerge (imerge?) das lutas resultantes das contradições internas que a formaram, desce já não apenas ao humilde remanso do lar do parolo, mas ao seu quintal e à sua estrebaria. Enaltece-se as “sãs virtudes” do povo e incrementa-se o que de mais alvar há no seu riso, abençoa-se a estagnação.


O oficiante jornalista comentador, opinion-maker, vedeta, juiz e o mais

Inserido neste contexto o novel jornalista, investido das funções atrás referidas, criadas estão as condições para que se sinta o centro do universo.

Atendendo a que a sua formação académica deixa, em geral, bastante a desejar (não só pela infeliz estrutura dos cursos de comunicação social, como pela insuficiente soma de conhecimentos obtida hoje em dia no ensino básico e secundário), o jornalista mais não é do que o aprendiz de uma verdadeira informação, mas investido e convicto da sua posição de mestre. Ser jornalista, no sentido da comunicação de uma verdadeira informação, implicaria uma soma de conhecimentos quase enciclopédica, estruturada por linhas de relacionação que lhe permitissem tanto interpretar mais lucidamente os factos, como informar de modo suficientemente abrangente e claro. Contudo, não é essa a realidade da quase totalidade desses “profissionais”, que de muito pouco percebem; compreende-se, portanto, que cortem a palavra a quem queira esclarecer realmente o que quer que seja, usando o argumento de que se tratam de “insondáveis pormenores técnicos que os nossos espectadores não entendem”. Daí passa-se rapidamente à fase em que o jornalista se sente dispensado da necessidade sequer de justificar o motivo desse corte: corta, simplesmente. A conversa só lhe interessa se ele for capaz de a perceber. Talvez tudo isto fosse remediável se houvesse uma pré ou pós especialização, mas nada disto cabe nos estreitos horizontes e no “curto prazo”, cultural e económico, em que o país funciona. O resultado de toda esta confusão, imaturidade e - porque não dizê-lo? - oportunismo, é que, em casa, o espectador, só fica a saber aquilo que o jornalista for capaz de perceber.

Eis uma outra das razões pelas quais passa a ser habitual que esse “ouvir ambas as partes” ponha lado a lado um ministro ou um cientista e o mais exaltado e vociferante popular que se acerque do microfone. Os primeiros remetem-se à defesa, antevendo retaliações por via de insinuações que, em geral, têm lugar no período em que o jornalista fecha a abordagem do assunto. O jornalista que (“evidentemente”) já sabe de tudo (já o sabia antes da entrevista, aliás!) - deixa sempre tudo em pratos limpos, desmascarando desde logo os figurões, os algozes que só ali estão para serem julgados! Postos o ministro ou cientista em plena corda-bamba, o juiz decide e a conversa nunca chega a lado algum, pelo menos no sentido de que se perceba o que é verdadeiramente significativo no que está em discussão.

Mais: a “coisa” vai ao ponto em que o jornalista, após ouvir o que ele sabe não agradar às audiências, deturpa o directo, a peça ou o texto, no sentido de que prevaleça a sua interpretação! Nas conferências de imprensa chega mesmo a tornar-se impossível ouvir o interveniente porque o “profissional” se sente na “obrigação” de o interromper para expor as suas próprias conclusões! E, na maioria dos casos, só se consegue ouvir a resposta correspondente à pergunta feita pelo jornalista do meio de comunicação sintonizado; se ele conseguir ser o primeiro, nada mais se saberá. Se for o segundo, com sorte, ouviremos a resposta dada ao primeiro, mas não a pergunta a que ela corresponde.

As entrevistas entre jornalistas começam agora a tornar-se corriqueiras. Refira-se, por exemplo, os casos em que um primeiro jornalista, em estúdio, entrevista outro, situado no exterior, sobre uma qualquer matéria, fazendo perguntas em que apela à opinião deste, atribuindo-lhe claramente deste modo a função de comentador. Baralha assim igualmente os campos de intervenção, estabelecendo em simultâneo a confusão na mente do espectador incauto ou desatento quanto à distinção de papéis e funções. E, por este meio, estabelecem também as hierarquias e níveis de poder e de vedetismo - que o estúdio é quem mais ordena.

Em resultado aparente de lutas internas pelo poder (e porque, como já se disse, business is business and time is money), o que é dito pelo jornalista em estúdio sobre determinado assunto é repetido sucessivamente pelo jornalista no directo, pela voz-off da gravação transmitida no mesmo directo e, finalmente, pelos intervenientes nessa mesma gravação – tanto pelo entrevistado como pelo entrevistador. Em determinadas ocasiões tão à-vontade se sentem que afirmam coisas contraditórias, sem sequer disso se aperceberem! Se estivesse ainda vivo, Bocage brindaria certamente todos os intervenientes deste obsceno processo com um qualquer epigrama acerca das relações que se estabelecem entre cães a propósito dos candeeiros.


O sussurro das melgas

Até aqui são praticamente inexistentes as queixas de pressões no sentido de censura, por parte de jornalistas. Nem há significativa diferença de comportamento entre a comunicação social do estado e a privada - talvez porque, não se sabendo o dia de amanhã, haja que prever a eventualidade de ir trabalhar para a concorrência. Contudo...

Em relação ao primeiro aspecto, torna-se óbvio que, por demasiado comprometedor e perigoso, jamais qualquer detentor de meios de comunicação social e de poder económico pressionaria uma redacção inteira para que fosse abordado isto e não aquilo, desta e não de outra forma, pelo que queixas desse tipo são facilmente rebatíveis. Quando se afirma, porém, que essa pressão é exercida, desde logo e prioritariamente, através das chefias, a refutação já é acompanhada de expressões menos convincentes (vulgo, sorrisos amarelos). Não se poderá inferir disto que, desde há muito tempo já, essas chefias não se encontrem em posição de o revelar? Que hajam aceitado gradualmente uma situação que lhes não permita agora espaço de manobra? Não terão (há muito!) ultrapassado o ponto de não-retorno?

“Nunca um jornalista faria isso”, diz alguém, não explicando exactamente o que é o “isso”. “Isso”, evidentemente, não consiste em eliminar parte ou a totalidade dos textos, com lápis azul ou de qualquer outra cor. Torna-se muito mais simples afastarem-se, calma e discretamente, daquilo que sabem “não interessar”. Há milhares de maneiras de o conseguir e eles devem ser os primeiros a saber. Sabem-no, aliás: a forma de um cumprimento, um sorriso ou um aperto de mão mais calorosos, são indicativo suficiente do nível de boas graças em que cada um se encontra.

Tudo isto se processa numa dinâmica de bola de neve, cujas dimensões acabam, todavia, por se tornar indisfarçáveis a partir de certa altura. O sindicato dos jornalistas, até aí muitas vezes convenientemente condescendente, politicamente correcto, e alguns responsáveis por redacções ou direcções de meios de comunicação social vêm então a público lembrar: que “as condições concorrenciais são adversas”, sem especificar onde se verificam essas condições (se entre empresas da “CS”, se entre jornalistas, se em ambos os campos); que a velocidade com que a informação circula nem sempre permite um “tratamento” jornalístico adequado; e, finalmente, que os destinatários não estão receptivos a uma informação mais elaborada (era só o que faltava!). Numa palavra: a culpa, afinal, é do mordomo, perdão!, do Zé Povinho e das suas exigências! Escamoteia-se, é claro, o problema real, que consiste nos lucros do grupo; encontramo-nos no campo de um problema de dinheiros em causa própria. O jornalista e o jornalismo começam finalmente a revelar-se como aquilo em que de facto os tornaram: em ferramenta de facturação. É um facto: os meios de comunicação social tenderão sempre a dar prejuízo ou, pelo menos, um lucro reduzido. É necessário, aliás, que assim seja, para fundamentar o relevo dado às audiências dos conteúdos informativos e outros. E não faltam os martelos para ajeitar as contas.

Os meses vão passando e tudo (inclusive as nossas vidas) se arrasta cada vez mais penosamente. Acaba-se em coberturas “informativas” de assuntos de pendor mais ou menos sanguinário. A única diferença entre as diferentes (?) abordagens é estabelecida pela maior ou menor quantidade de baba que entaramela a fala e escorre dos lábios de cada pivot de TV (aqui fica esta homenagem, em forma mais ou menos literária, a Rafael Bordalo Pinheiro).


A “revolta dos morcegos”

E eis que de repente (não mais que de repente!), um membro do governo riposta ao que diz ser um ataque sem sentido vindo de Marcelo Rebelo de Sousa, omnicomentador. Mas, se se encontra fora de dúvida que jornalistas, comentadores ou quaisquer outros cidadãos de um estado de direito não possam ser criticados, elogiados ou simplesmente apoiados pelas suas opiniões ou acções por qualquer outro cidadão, oh! Céus!, porque cai agora o Carmo e a Trindade? Arriscaremos a nossa reputação no que se segue.

Note-se, para começar, que poderá existir interesse em tirar vantagem política do ocorrido, acusando-se o ministro de querer “rolhar” o comentador, para deste modo se poder “rolhar” mais seguramente o ministro. Em seguida, que parece patético o apelo do Ministro à Alta Autoridade para a Comunicação Social, na medida em que ela não foi feita para intervir no que quer que seja de substancial - e ele sabe-o (?). Por fim, o que é igualmente importante, temos ainda que ter em conta que, por muito estreita que seja a capacidade de raciocínio do dito ministro, é duvidoso que ele não se aperceba de que essa é a maneira mais ineficaz e tosca de provocar censura. De qualquer forma, a Alta Autoridade para a Comunicação Social acorda como quem cai da cama abaixo, gafanhota perguntas, manifesta perplexidade, tartamudeia respostas. É que, objectivamente, Marcelo pode ser o lançador de sementes que acabam por se transformar em factos políticos, mas não há nisso actualmente nada de extraordinário: ele é, simplesmente, um comentador, um opinante, tal como “palettes” de jornalistas e directores de meios de comunicação social, numa inaceitável - mas instituída pela prática diária - perversão das suas funções.

É exactamente aqui que a engrenagem se põe em movimento e ganhando eficácia ao alicerçar-se precisamente nesta confusão de papéis. Para que o comentário de Rebelo de Sousa se torne facto político é necessária a intervenção de mais alguém; e é no preciso instante em que um jornalista pega na deixa de Marcelo e interpela o alvo daquele que se dá a transformação de uma opinião em questão jornalística. Pode dizer-se que o jornalista usa a opinião de Rebelo de Sousa para interpelar alguém, como se Marcelo fosse jornalista; ou, doutra forma, que o jornalista interpela alguém, confrontando-o com uma pergunta de um opinante, colocando-se assim a si próprio em idêntica posição. O jornalista cai – melhor dito, atira-se – ao jogo dos chapéus (de jornal).

É natural a incomodidade, a desorientação e até a indignação, mais ou menos justa, que este modo de proceder provoca nos alvos, tanto mais que, sendo abordados por um jornalista, estão de facto a retorquir a um opinante. Com efeito, não é ao jornalista que respondem, mas ao opinante por interposto jornalista, travestido de moço de recados – ou, ao contrário, a um moço de recados travestido de jornalista? Este, porque se encontra dispensado de fundamentar as suas razões ou suspeitas perante o público, safa-se assim da parte mais difícil do trabalho jornalístico – saber do que fala; ao livrar-se dele, afasta-se, na prática, da posição de jornalista sem que todavia o assuma. Deixa-se ir na onda, engorda as audiências e isso dá-lhe jeito.

Para as empresas detentoras de meios de comunicação social, o facto de lidarem com informação ou com a venda de iogurtes é irrelevante: trata-se, simplesmente, do “produto” (“preduto” – como eles dizem). Enfim, sabem que devem ter algumas precauções suplementares específicas - “específicas” é o termo da moda que não largam, à imagem, aliás, dos fabricantes de iogurtes ou de margarina que lhes servem de modelo. A sua preocupação principal é a que respeita aos lucros do meio de comunicação social ou do grupo económico que o engloba. Se os iogurtes constituem um alimento para o corpo, os meios de comunicação social devem produzir alimento para o cérebro (mente sã em corpo são … ). Ninguém duvida de que se qualquer fabricante de iogurtes produzisse um iogurte venenoso se veria em palpos de aranha; mas não passa pela cabeça dos profissionais da comunicação social a possibilidade de serem cobertos de alcatrão e penas quando difundem a estupidez, a imbecilidade e a cretinice, como se isso não pudesse ter consequências graves. A hipocrisia e a desorientação tornam-se bem claras quando a comunicação social entra em fase de assanhamento histérico com o problema da educação, onde se incluem as “vítimas” que são os filhos dos próprios jornalistas. O que diriam estes se os professores procedessem, ao nível da informação, com a falta de rigor, de conclusividade e de substância informativa que eles mesmos se permitem ter? O que diriam - o que dizem! - de uma escola de informação mínima e descontextualizada, bacoca, ao serviço das “audiências”? O que diriam de uma informação que não comportasse formação pessoal, mesmo quando já adultos, no ensino superior?

Voltando à questão, se este negócio envolve uma quantidade enorme de zeros, não convém que um qualquer comentador venha agora arranhar a engrenagem. Ele está lá para a olear, não para lhe pôr areia. Não se sabe se Marcelo foi ou não abordado por um (se calhar, pelo principal) dos veios dessa engrenagem, mas a verdade é que os seus congéneres vêm a terreiro dizer que se aperceberam de que procuravam censurá-lo, querendo ainda fazer crer que, embora gravíssimo, seria caso único. Repare-se que a irritação se verifica face à eventual censura a um comentador (opinante) e não a um jornalista e infira-se daqui as proporções que o caso adquiriria caso a censura fosse exercida directamente sobre um “profissional da comunicação”!

É que os jornalistas, afirma a retórica “ideológica” “neo-comunicacionista” não exercem censura, nem se deixam pressionar, limitam-se a escolher o que é mais apelativo, são os novos arautos da verdade objectiva e imparcial. Na verdade, a única diferença entre este discurso e o de Marcelo Caetano é a substituição do termo “interesse do público” pelo de “apelativo”. Sem disfarces, porém, o termo a aplicar seria “projecto comercial”, o qual, tendo por fundamento o apelativo, implica desde logo uma orientação derivada do interesse e a manipulação dela decorrente. Tudo isto assenta, necessária e inevitavelmente, no submergir da consciência, elemento sine qua non da sobrevivência não só das sociedades, como das próprias civilizações.
Evidentemente, que uma boa parte dos jornalistas ainda mantém que não existe censura porque nunca sentiu que lhe segredassem o que quer que fosse ao ouvido, no sentido de escreverem assim e não assado. Muito embora recentemente muitos tenham vindo, mais ou menos abertamente, a público, declarar o contrário; o sindicato de jornalistas tem sido bem claro - mas só recentemente.


O comércio

Fica-se então sabendo que decorrem negociações entre gigantes da comunicação social local. E que o estado controla parte de um deles. E quem sabe se dessas negociações não fará parte a renovação da licença de emissão do operador a quem Marcelo Rebelo de Sousa acaba de virar as costas...?!E quem sabe se isso não explicará também o cuidado com que o operador directamente concorrente ao de Marcelo tratou a matéria, bem como a mudança detectável de postura de alguns dos seus jornalistas …

Uma coisa, pelo menos, já se ganhou. Deixou de se assistir às típicas reacções intempestivas do jornalista face à nota, por terceiros, de incorrecção ou exercício censório de algum outro jornalista, ou dele próprio. Há pouco tempo atrás o jornalista temperaria imediatamente uma canja ao nível de caldo do Bulhão, querendo fazer crer que lhe passava despercebido que uma tomada de partido não era adequada ao exercício do jornalismo – mesmo que o visado fosse ele.

Mas voltando à exigência do ministro: é curioso que os partidos da oposição, em bloco, venham culpar o ministro pelo afastamento de Rebelo de Sousa do dito “gigante” da informação, quando, em teoria, face ao óbvio conflito entre liberdade de informação e projecto comercial, a reacção da dita oposição devesse ser a contrária. Enfim, pode dar-se o caso de estarmos perante uma cena de menor importância entre as variadas que vieram a seguir-se, e que a oposição queira estar de bem com a comunicação social, pelo menos enquanto o status quo político se mantiver; a partir daqui, porém, torna-se difícil antever a forma como virá a ser possível conciliar oposição, comunicação social e liberdade de expressão! Muito mais assustador ainda se se supuser um cenário em que a oposição haja antecipadamente concertado a aprovação da renovação (e alargamento) dessa “boa vizinhança” caso o governo caísse, um silencioso e tácito acordo em consequência do qual a oposição obteria um desinteressado desinteresse da comunicação social pelo apodrecimento dos princípios dessa (da esquerda, em peso!) oposição, ou, pelo menos, um futuro estado de graça substancialmente mais dilatado.

Seja qual for a hipótese mais correcta, pode-se, no entanto, retirar de imediato uma ilação: tal como os vírus infecto-contagiosos, os vícios políticos espalham-se facilmente. E como a Guiné Bissau é uma nossa ex. colónia … Que enfie a carapuça (vermelha) quem achar que ela lhe serve.

Subitamente, os moranguinhos há pouco referidos metamorfoseiam-se em morcegos. Aqui d’el-rei, que ele há censura! “Ninguém sabe que coisa quer/ Ninguém conhece que alma tem/ Nem o que é mal nem o que é bem/ (…) /Oh Portugal, hoje és nevoeiro/ É a Hora!” Finalmente revelou-se: o Desejado volta como comentador, melhor, multiplica-se, por milagre, num exército de Sebastiães. Mas não se tratarão de meros impostores? Punhamo-los à prova. De facto:

- Nenhum deles se mostrou alguma vez preocupado com esta situação quando se encontrou no papel de excepção que confirmava a regra;

- Muitos deles limitam-se a palavrosas e miríficas explicações acerca dos porquês de tão intempestiva retirada de Marcelo, defendendo que este procura dar os primeiros passos à conquista de Marte (ele é bem capaz disso...!), com o intuito de desvalorizar a “coisa”, assim distraindo as atenções;

- Outros (morcegos), por sua vez, lembram que, após ponderada ponderação, anunciarão se farão ou não, em directo, o seu haraquiri. Continuamos todos à espera.

Eram mesmo todos impostores, ardendo em fogos-fátuos (ou de conveniência...).


A dupla metamorfose: de morcego novamente a morango

Passada esta vulcânica convulsão, não parece que sejam, apesar de tudo, capazes de fazer sequer o que, apesar de tudo, Marcelo Rebelo de Sousa fez. É claro que podem, à vontade(?), usar o argumento de que, continuando onde estão, se encontram no local apropriado para lutar eficazmente contra o monstro censório. Mas não será mais realista e provável que venham a ajustar-se ainda mais à censura, afirmando que foram entretanto limadas as arestas que, temporariamente, projectavam sombra sobre a classe? Não serão afinal somente morcegos à reconquista da forma de morango e seu respectivo posto? Ou, dito de outra forma, não serão apenas morcegos garantindo que a censura que por ali vai reinando não os abrange, permitindo-lhes continuar a “morangar”? De uma forma ou outra, o que faz falta é entreter a malta com milhares de horas de “informação” acerca dos pormenores mais ou menos macabros ou escabrosos acerca de não importa o quê. A utópica Idade da Informação, geradora e gerada pela maioridade humana desde sempre teorizada pelos filósofos, descrita pelos romancistas e cantada pelos poetas, é, na sua versão real do século XX para o XXI, a Idade da Censura Maior, fomentadora da sua maior menoridade: a censura pelo lixo. E não lhe faltam colaboradores, nem funcionários.

Consta por aí que D. Sebastião há-de chegar.